terça-feira, 5 de maio de 2009

O Bilhete



Tinha ainda nas mãos o gosto de sal. Na verdade sal, limão e peixe.
Na ponta da toalha de mesa, rota e desfiada, limpei sorrateiramente as pontas dos dedos, como se cometesse algum delito. É claro que naquele ambiente ninguém notaria tal gafe.
Carmem era uma moça linda, loira, de olhos claros, corpo bonito e belos seios. Tenho saudade ou uma certa melancolia, não saberia distinguir. Quisera me entregar, mas tudo ficou no porvir.
Mas amanhã tudo irá de vez, amanhã tudo será passado, será distante como Carmem é de mim. Amanhã, assim como hoje, terei uma página em branco para escrever, amanhã terei tudo, como hoje tive, só não pude escrevê-la.
O peso da bagagem cansa-me os braços, o calor parece duplicar-se nesta brisa quente com cheiro de maresia.
Carmem cheirava bem, era branca como a lua, sorria como um anjo, Carmem era...
Nas ruas as pessoas de rostos vermelhos, o suor a banhar-lhes as frontes, fazia calor, muito calor.
Mas o que tinha naquela mala que pesava tanto?
Atravessei a rua do cais, em direção ao bar, a água quente não saciava a sede, o ar pesava...
Meio dia e a cidade parecia volitar numa nuvem embaçada que vinha do chão quente.
Duas horas e todos pareciam dormir, menos eu e minha mala, pesada como arrependimento.
Quanto tempo ainda? O bilhete era em aberto, a ida não...Mas quanto tempo?
Torno ao bar, o da toalha rota, sentei-me e mais água e nada me refresca, a não ser a sensação da partida. Deveríamos viver sempre assim achando que a qualquer momento vamos partir.
Carmem? Não, Carmem não partiu. Ela continua lá, plantada em seu vaso de cristal, não fosse isso talvez pudesse tê-la tocado.
Um dia fui a casa dela, Carmem me recebeu de pijamas, naquele dia soube que a desejava.
E num outro dia ela foi a minha casa, não estava eu de pijamas, mas queria que ela me desejasse.
Ainda estava no bar, o da toalha.
O ar quente me trouxe a lembrança de um verão em Parati, não estava só, tinha Hida comigo. Banhávamos-nos a cada 20 minutos, eu não saberia dizer o que fizemos durante todo o verão, mas lembro-me dos banhos.
As lembranças de outros dias vinham-me com calma a memória. Com a mesma calma de quem escolhe um dia para partir...
Alguns deles me davam muita paz, podia até ouvir as Cantatas de Bach ao fundo. Ah! As Cantatas. Estavam na mala?
Carmem me causava surpresas, era mulher de mistérios. Os mistérios eram dela, só prá ela, a mim , apesar das surpresas, eram-lhes naturais.
Que horas são? O relógio parou...
Poderia sim ter colocado um horário no bilhete, mas detesto que me apressem.
Levanto-me e já não agüento o peso. O que tanto trouxe a final de contas?
Observo na calçada oposta uma mulher com seu filho as mãos, sentados quase desfalecidos, me dá agonia, o que poderia fazer? Ah! Este calor...que calor!
Aproximo-me do cais, a minha esquerda os trens chegam e a minha direita os navios partem, mas quando mudo de calçada tudo parece se inverter. Qual a ordem corretas das coisas?
Carmem parecia querer tudo, do céu a terra tudo poderia querer.
Uma vez, tal qual serpente, dei-lhe uma maça. Bela e vítrea maça, mas o pecado estava em meus olhos e não na maça, Carmem a comeu e voou feito anjo ou bruxa, não sei, atingiu os céus e me devolveu pétalas. Percebi naquele momento que nem tudo que eu continha poderia ter como fundo as Cantatas.
O sol parecia querer dar-me uma trégua. Os trens e navios continuavam a chegar e partir e eu cada vez com menos presa.
Carmem é uma viagem, uma viagem sem partida e sem voltas, Carmem é um estar...
Enquanto espero o mundo passa por mim gritando vida aos borbotões. Chama-me acima, dos lados, à frente e atrás. E só Carolina não vê...
A noite cai e vem uma moça a pedir um cigarro, chame-se Esmeralda, mas de verde apenas o estranho esmalte nas unhas. Senta-se ao meu lado e oferece-me seus favores. Logo eu aceitar favores, detesto pedir favores. Embora a curiosidade me aguce, quero o que seja espontâneo.
Esmeralda mostra-me suas cicatrizes, conta de seu amor, igual a tantas outras estórias de folhetins, mas ímpar na sua infinita dor de mulher.
Que cicatrizes teria Carmem?
Num quarto sujo ali perto, Esmeralda desfaz-se de seus panos. A curiosidade matou o gato, assim dizem, não é? Acredito na vida após a morte, mas não me deitei com Esmeralda, apenas a sonhei. Por mais que sua boca descesse ao inferno, eu estaria no céu...
Comemos ali mesmo o pão da viagem, reparti como qualquer cristão o faria.
Tirando do bolso um pequeno papel, uma mensagem lá estava: “Oração à Mulher”, li um pequeno trecho em voz alta “...Fonte sublime, se as feras do mal te poluíram as águas, imita a corrente cristalina que no serviço infindável a todos, expulsa do próprio seio a lama que lhe atiram...” Deixei-lhe o papel e fui, não queria ser a sua fera muito menos a sua lama...
Esmeralda, a de esmalte verde nas unhas tinha lá suas águas cristalinas, nelas me permiti banhar-me, nelas, resignadamente me banhou quando me deixou sonhar em sua boca que descia ao meu inferno.
Que feras atormentariam Carmem? Solidão?
“...Teu coração é uma estrela encarcerada...”, dizia outro trecho da mensagem...
Amanhece uma nova página em branco.
Degusto o pão amanhecido, as sobras do ontem. Sempre há sobras de ontem.
Novamente à beira do cais desfiz-me, finalmente, do peso que carregava. Atirei ao mar tudo o que não sabia daquela bagagem, eram preconceitos, orgulho, prepotência, tédio e misérias de um ser que não poderia ser.
E eu ainda tinha nas mãos o bilhete... sem data... sem horário... mas com direito a partida...
Carmem? Carmem partiu. Partiu antes que a alcançasse, antes que amanhecesse a alegria em lugar do medo. Foi-se apenas com sua bagagem de mão.

quarta-feira, 15 de abril de 2009

E Eu não Percebi...


Primeiro veio a vida,
depois o silêncio,
depois o amor
e novamente o silêncio.
Depois veio a loucura,
depois o vazio
e mais uma vez o silêncio.
Depois olhei de um lado,
de outro,
e vi que tudo foi em vão;
porque antes da vida veio
a fantasia,e eu não percebi...

Limites



Sou sangue, luxúria e uma porção de outras coisas belas que o teu horror não espantou.
A luz que se acendeu no fundo de meu pesar,
hoje, confundi-se com minha própria pessoa.
Tolero tudo, menos a traição de minha integridade.
Tolero teu cabelo escorrido, tua púbis rala, o teu hálito matinal, mas não me tome teu.
Pertenço a vida e a um momento teu.
Pertenço a todas as mulheres e a nenhuma, mesmo porque não tenho nenhuma.
Entrego-me aos rendez-vous inesperados, ao regarder de uma moça quase inocente da uma pequena cidade.

Sol e Aço



Meu corpo teso sede ao calor do sol,
o sol no aço de meu corpo reluzindo minha virilidade,
o aço de minha virilidade rompendo teu ventre,
cortando o teu prazer.
E nem sei onde você está...

segunda-feira, 13 de abril de 2009

Sobre o Conhecimento



Um grupo permanente começava a tomar forma. Um dia que estávamos com Gurdjieff, perguntei-lhe: “ Por que o conhecimento se mantém tão cuidadosamente secreto? Se o antigo conhecimento foi preservado e se existe, falando de um modo geral, um conhecimento diferente de nossa ciência e de nossa filosofia que até as ultrapasse, por que ele não se torna propriedade comum? Por que seus detentores recusam-se a deixá-lo entrar no circuito geral da vida, favorecendo uma luta mais decisiva contra a mentira, o mal e a ignorância?”
Tal pergunta, creio, deve surgir em todos os espíritos que encontram, pela primeira vez, as idéias do esoterismo.
- Há duas respostas, disse-me. Primeiro, esse conhecimento não se mantém secreto; segundo, ele não pode, por sua própria natureza, tornar-se propriedade comum. Examinaremos, em primeiro lugar, este segundo ponto. Vou lhe provar em seguida que o conhecimento – acentuou esta palavra – é muito mais acessível do que geralmente se acredita àqueles que são capazes de assimilá-lo; todo o mal é que as pessoas ou não querem ou não podem receber.
“Mas, antes de tudo, deve-se entender que o conhecimento não pode pertencer a todos, não pode sequer pertencer à maioria. Tal é a lei. Você não a compreende porque não se dá conta de que, como qualquer coisa no mundo, o conhecimento é material.
É material – isto significa que possui todos os caracteres da materialidade. Ora, um dos primeiros caracteres da materialidade implica numa limitação da matéria, quero dizer que a quantidade de matéria, num dado lugar e em dadas condições, é sempre limitada. Até a areia do deserto e a água do oceano existem em quantidade invariável e estritamente medida. Por conseguinte, dizer que o conhecimento é material é dizer que há uma quantidade definida num lugar e num tempo dados. Pode-se, pois, afirmar que, durante certos períodos digamos um século, a humanidade dispõe de uma quantidade definida de conhecimento. Sabemos, porém, por uma observação mesmo elementar da vida, que a matéria do conhecimento possui qualidades inteiramente diferentes, conforme seja absorvida em pequena ou em grande quantidade. Tomada em grande quantidade num dado lugar – por um homem, por exemplo, ou por um pequeno grupo de homens – produz muito bons resultados; tomada em pequena quantidade por cada um dos indivíduos que compõem uma massa muito grande de homens, não dá resultado algum, a não ser, por vezes, resultados negativos, contrários aos que se esperavam. Portanto, se uma quantidade definida de conhecimento vier a ser distribuída entre milhões de homens, cada indivíduo receberá um pouco e essa pequena dose de conhecimento nada poderá mudar, nem em sua vida nem em sua compreensão das coisas. Seja qual for o número dos que absorvam essa pequena dose, o efeito em sua vida será nulo, a não ser que se torne ainda mais difícil.
“Mas, se, ao contrário, grandes quantidades de conhecimento puderem ser concentradas em um pequeno número, então este conhecimento trará grandes resultados. Desse ponto de vista, é muito mais vantajoso que o conhecimento seja preservado por um pequeno número e não difundido entre as massas.
“Se, para dourar objetos, tomamos certa quantidade de ouro, devemos conhecer o número exato de objetos que ela nos permitirá dourar. Se tentarmos dourar um número muito grande de objetos, ficarão dourados desigualmente, com manchas, e parecerão bem piores do que se nunca tivessem sido dourados; de fato, teremos desperdiçado o nosso ouro.
“ A repartição do conhecimento baseia-se num princípio rigorosamente análogo. Se o conhecimento fosse dado a todo mundo, ninguém receberia nada. Se for reservado a um pequeno número, cada qual receberá o suficiente, não apenas para guardar o que recebe, mas para aumentá-lo.
“À primeira vista, essa teoria parece muito injusta, porque a situação daqueles a quem o conhecimento, de certo modo, é recusado para que outros possam receber mais, parece muito triste, imerecida e mais cruel do que deveria ser. A realidade é, entretanto, muito diferente; na distribuição do conhecimento não há sombra de injustiça.
“É fato que a enorme maioria das pessoas ignora o desejo de conhecer; recusam sua quota de conhecimento, descuidam até de tomar, na distribuição geral, a parte que lhes cabe, para as necessidades de sua vida. Isto é particularmente evidente em períodos de loucura coletiva, de guerras, revoluções, quando os homens parecem perder, de repente, até o grãozinho de bom senso que tinham comumente e, tornados em perfeitos autômatos, entregam-se a massacres gigantescos, como se não tivessem mais sequer o instinto de conservação. Enormes quantidades de conhecimento permanecem assim, de certo modo, não reclamadas e podem ser distribuídas aos que sabem apreciar-lhe o valor.
“Não há nada de injusto em tudo isso, porque os que recebem o conhecimento não estão tirando nada que pertença a outros, não despojam ninguém; apenas tomam o que foi rejeitado como inútil e que ficaria, em todo caso, perdido se não o tomassem.
“O acúmulo do conhecimento por uns depende da rejeição do conhecimento por outros.
“ Na vida da humanidade, há períodos que coincidem geralmente com o começo do declínio das civilizações, em que as massas perdem irremediavelmente a razão e se põem a destruir tudo o que séculos e milênios de cultura haviam criado. Tais períodos de loucura que coincidem freqüentemente com cataclismos geológicos, perturbações climáticas e outros fenômenos de caráter planetário, liberam uma quantidade muito grande dessa matéria do conhecimento. O que requer um trabalho de recuperação, sem o qual ela se perderia. Assim, o trabalho de recolher a matéria esparsa do conhecimento coincide freqüentemente com o declínio e a ruína das civilizações.
“ Esse aspecto da questão é claro. As massas não procuram o conhecimento, não o querem, e seus chefes políticos – por interesse - só reforçam essa aversão, esse medo a tudo o que é novo e desconhecido. O estado de escravidão da humanidade tem por fundamento, esse medo. É até difícil imaginar todo o seu horror. Mas as pessoas não compreendem o valor do que perdem assim. E, para entender a causa de tal estado, basta observar como vivem as pessoas, o que constitui a razão de viver delas, o objeto de suas paixões ou aspirações, em que pensam, de que falam, o que servem e o que adoram. Veja para onde vai o dinheiro da sociedade culta de nossa época; deixando de lado a guerra, considere o que dita os mais altos preços, para onde vão as multidões mais densas. Refletir por um momento em todos esses desperdícios, deixa claro, então, que a humanidade tal qual é atualmente, com os interesses pelos quais vive, não pode esperar outra coisa senão o que tem. Mas, como já disse, não poderia ser diferente. Imagine que haja, para toda a humanidade, apenas meio quilo de conhecimento disponível por ano! Se esse conhecimento fosse difundido entre as massas, cada qual receberia tão pouco que continuaria sendo o louco de sempre. Mas, devido a que só alguns homens desejam esse conhecimento, os que o pedem poderão receber dele, por assim dizer, cada qual um grão e adquirir a possibilidade de se tornarem mais inteligentes. Todos não poderiam se tornar inteligentes, mesmo que o desejassem. E se isto acontecesse não serviria para nada, pois existe um equilíbrio geral que não poderia ser invertido.
“ Eis um aspecto. O outro, como já disse, refere-se ao fato, de que ninguém esconde nada; não há o menor mistério. Mas a aquisição do verdadeiro conhecimento exige grande trabalho e grandes esforços, tanto da parte do que recebe como da que dá. E os que possuem esse conhecimento fazem tudo o que podem para transmiti-lo e comunicá-lo ao maior número possível de homens, para lhes facilitar a aproximação e torná-los capazes de se prepararem para receber a verdade. Mas o conhecimento não pode ser imposto pela força àqueles que não o querem e, como acabamos de ver, um exame imparcial da vida do homem médio, de seus interesses, do que preenche seus dias, demonstrará imediatamente que é impossível acusar os homens que possuem o conhecimento de escondê-lo, de não desejarem transmiti-lo ou de não desejarem ensinar aos outros o que eles mesmos sabem.
“ Aquele que deseja o conhecimento deve fazer ele mesmo, os primeiros esforços para encontrar a sua fonte, para aproximar-se dela, ajudando-se com as indicações dadas a todos, mas que as pessoas, via de regra, não desejam ver nem reconhecer. O conhecimento não pode vir aos homens gratuitamente, sem esforços de sua parte. Eles compreendem isso muito bem, quando se trata apenas dos conhecimentos ordinários, mas, no caso do grande conhecimento, quando admitem a possibilidade de sua existência, acham possível esperar algo diferente. Todo mundo sabe muito bem, por exemplo, que um homem deverá trabalhar intensamente durante vários anos, se quiser aprender chinês; ninguém ignora que são indispensáveis cinco anos de estudos para aprender os princípios da medicina e talvez duas vezes mais para o estudo da música ou da pintura. E, no entanto, certas teorias afirmam que o conhecimento pode vir às pessoas sem esforços de sua parte, que pode ser adquirido até mesmo dormindo. O simples fato da existência de semelhantes teorias constitui uma explicação suplementar para o fato de que o conhecimento não pode alcançar as pessoas. Entretanto, não é menos essencial compreender que os esforços independentes de um homem para alcançar seja o que for nessa direção não podem dar nenhum resultado por si mesmos. Um homem só pode alcançar o conhecimento com a ajuda dos que o possuem. Isso deve ser compreendido desde o início. É necessário aprender com os que sabem.”

OUSPENSKY

domingo, 12 de abril de 2009

Sem Nomes


Naquele corpo tentei resgatar minha sombra de paixão, como se toda paixão fosse possível , como se todo possibilidade fosse uma paixão.
Existe um quê de mistério, de conforto e de frio nesta sombra.
Ana Paula! Como se bastasse saber viver, como se bastasse saber onde o sol se põe ou a que horas tenho fome.
Há um moleque dentro de mim, que vive a chapinhar as poças d’água, que dá de comer aos pombos, e dorme com a sujeira que se acumula em suas roupas. Deste moleque tenho a vida, o brinquedo esperto numa bolha de sabão, tenho a manga direita da camisa suja do nariz que escorre e a esquerda lambuzada de suor e macarrão.
Tenho um corpo, tenho Ana Paula, tenho um moleque e náuseas.
E por detrás de tudo isto, tenho saudade.
Dá-me náuseas viver esta plenitude, este "saber-se" vivo e sorver cada segundo desta sublime aventura.
Hoje acordei às cinco horas, tinha os olhos como num nevoeiro, quis abrir um livro, um livro falso, daqueles que só tem a capa, e encontrar uma lembrança do que seria eu antes deste despertar.
Não posso me mentir neste momento, mas ao abrí-lo, ocorrendo exatamente como queria, saltaram daí mais do que lembranças, foram cobras e lagartos, mais cobras que lagartos,
com toda aquela peçonha que lhes é familiar, e arrancaram mais que lembranças, foram sentimentos vivos que reviraram o peito com a mesma sensação de estarem acontecendo pela primeira vez..
Rita! Tenho a boca cheia de poesias e um coração rebelde a te quebrar na cara.
Fechei o livro, cretinamente como se jamais fosse abrí-lo novamente, corri ao banheiro, fiz a barba, tirei o bigode e já era eu novamente: dentes escovados, cabelos penteados, sapatos lustrados...Droga! Onde estão os meus sapatos?
Sentei-me à escrivaninha, de chilenos, e pus na prosa toda a poesia que pude enxergar até o limite que separa o gênio que eu sou, dos teus peitos. Teus peitos Carmem, estúpidos e formosos peitos, que chegam a ferir minha genialidade e põe-me em desalinho com a vida que sonhara.
Mas o que existe entre minha genialidade e os teus peitos, Carmem? Justo eles! O que teriam com minha genialidade? Fácil! É só se lembrar que foram neles que suguei esta vida que me estimula a intelectualizar-me do que estou sendo. E forem deles que extrai o leite que me banha nestas manhãs em que eu sou o moleque que vive em mim.
Ainda tenho os cabelos, os poucos, molhados pela chuva de ontem. Mas não foi uma chuva qualquer não, destas que a gente vê no noticiário que inunda vias e cidades, choveu como se o céu se aliviasse de uma grande dor, como um arroto a aliviar o estômago, aparentemente fisiológico, mas não. Havia algo naquele céu que chovia, na água que escorria no meu corpo, tudo formava um caldo, e eu era a fibra a dar-lhe consistência. Era um jorro de palavrões, cusparada, que nojo! Que alívio! O do céu não o meu.
Cheguei, pus os chilenos... Droga! Onde estão os meus chilenos...Corri ao chuveiro e lavei a alma naquela água cristalina, mas o corpo não, este ainda tinha a chuva. Talvez aquela chuva do céu fosse a minha também.
Beatriz! Ah Beatriz, a quem os sussurros me enlouqueciam! Tenho ainda nos lençóis as dobras que fizestes da última vez, tenho no armário tua meia de seda com teu cheiro de mulher. Beatriz que me ensinou o que havia de bom na dor de partir, que tinha o dom de travestir-se de mim enquanto eu dela. Tirei do teu ventre a semente do que sou e te esqueci como quem se esquece de viver.
Dói-me os bagos neste esforço de resistir a tua boca Doroteia, você que foi de Dirceu e hoje não é de ninguém.
Às seis horas tenho que sair para o trabalho. E tirei os bigodes, o que vão dizer? Mas tinha que tirá-los mesmo, afinal deixavam-me com cara de cafetão, e minhas mulheres são só minhas e de mais ninguém - ou eu delas?
Dobro o último maço de cigarros, foram seis desde as cinco, faço dele, do maço, uma graciosa gravata borboleta e dou ao gato e despeço-me dele como quem vai só até a sala.
O cheiro do lotação não me permite lembrar se usei o meu perfume nesta manhã, ora deve tê-lo usado!
Sete horas e trinta minutos, Estação da Luz, não sei que diabos, " da Luz", que luz?
Ando apressado como se realmente estivesse, mas não estou, assim pareço-me normal. Olho todos os camelôs, e eu os sou: sem vitrinas, tudo à mostra, vísceras a venda, cor de rosa, pink, verde limão - que mau gosto meu Deus!
Ainda recosta-se no muro uma remanescente prostituta. Representante autêntica da puta das putas, batom borrado, saia justa, meias desfiadas, uma bolsinha cafona e um cigarro Plaza.

- Oi querido! E ela nem imagina o que é ser querido, penso. Entristece-me tal constatação, mas ao tempo enoja-me o cheiro de sêmen e de suor que exala de seu corpo.
Não é o teu corpo Marta, não é o meu sêmen. Mas que porra estou dizendo? Marta está longe disso, dorme agora o seu sono de beleza, dorme os seus ursinhos de pelúcia e nem sonha o lotação, a Estação da Luz, a remanescente prostituta.
Sonha o meu carinho, o meu delírio, o desejo de que eu seja só dela, mas não sonha o meu desejo de que ela fosse todas.
Cada uma dessas mulheres têm a minha parcela de culpa em existirem, a cada uma delas dei o meu amor, o meu tempo, dei-lhes minha bondade, generosidade, dei-lhes liberdade, dei-me todo, de graça, fui-lhes enfim, gratuito. E delas tive sua paixão, seu desejo, sua falta de ar, suas mordidas.
Beatriz a que fostes todas antes do todas existirem, Carmem, que teus peitos fiz o molde de meus instintos, Rita que de tua criancice arranquei a mulher que nunca fostes, Dorotéia a que fostes e sempre serás minha musa, Marta que poderia ser qualquer uma e nenhuma e Ana Paula, Ana Paula e a vida que não tive, arrancastes do fundo de meu peito as mulheres que nunca fui.
Eis o impasse de um escritor: quem são estas mulheres? Eu?
Eu, um Super-Homem a la Gilberto Gil?
Eu a mulher que não me tenho? A mulher que se traveste num bigode arrancado a navalha? Eu, um homem inteiro, perverso e feliz? Sim, eu, um homem integro.
São sete e quarenta e cinco, e minha cabeça já não aguenta tanta gente, só mais cinco minutos e alcanço o escritório.
A vida é como uma mulher num tango, ora temos sua boca a um milímetro da nossa, ora a temos quase a um milímetro do chão, então a puxamos novamente, para mais uma vez tê-la a um milímetro da nossa boca, sem nunca realmente tê-la.
À porta do escritório, antes de entrar, recordo-me, ou repito-me, que tudo vale a pena, em tudo existe uma graça, um truque, uma fantasia que se traduz na satisfação em estar vivo, seja qual for a circunstância, seja qual for a sorte sempre é vida, sentir isto é próximo de ser divino, é próximo de ser Deus.
Assim passo o dia sem orgulho, sem rancor, até que o bendito relógio me devolva a satisfação de minha lógica mundana.
Enfim a noite. O resgate num corpo, num copo, num lugar comum, e agora pareço não ter pressa, mas tenho, assim pareço-me normal.
Abro a janelas de casa, e jogo os sapatos, os chilenos, os livros falsos, hoje não verei minhas mulheres, nem terei saudade ou bigode para aparar e durmo, durmo apenas com o moleque que sou, limpo o nariz com braço direito, o suor e o macarrão com o esquerdo...durmo...

...se quebrou...


Algo dentro de mim se quebrou...
Partiu-se em sem pedaços...
Algo dentro de mim não canta mais...
Calaram-se as sem vozes...
Algo dentro de mim fez-me esquecer da compaixão...
Murcharem-se os sem corações...

Irremediavelmente algo partiu-se, calou-se, murchou-se...

irremediavelmente, ante minha incompetência de ser sobre-humano...

Algo atemporal, algo quase imoral, algo anárquico e peçonhento causou um milhão de pedaços
que unidos por suas auras cintilantes e cinzentas não deixaram de ser integras em sua estúpida desculpa de “ser assim mesmo”: o que realmente estou...