domingo, 12 de abril de 2009

Sem Nomes


Naquele corpo tentei resgatar minha sombra de paixão, como se toda paixão fosse possível , como se todo possibilidade fosse uma paixão.
Existe um quê de mistério, de conforto e de frio nesta sombra.
Ana Paula! Como se bastasse saber viver, como se bastasse saber onde o sol se põe ou a que horas tenho fome.
Há um moleque dentro de mim, que vive a chapinhar as poças d’água, que dá de comer aos pombos, e dorme com a sujeira que se acumula em suas roupas. Deste moleque tenho a vida, o brinquedo esperto numa bolha de sabão, tenho a manga direita da camisa suja do nariz que escorre e a esquerda lambuzada de suor e macarrão.
Tenho um corpo, tenho Ana Paula, tenho um moleque e náuseas.
E por detrás de tudo isto, tenho saudade.
Dá-me náuseas viver esta plenitude, este "saber-se" vivo e sorver cada segundo desta sublime aventura.
Hoje acordei às cinco horas, tinha os olhos como num nevoeiro, quis abrir um livro, um livro falso, daqueles que só tem a capa, e encontrar uma lembrança do que seria eu antes deste despertar.
Não posso me mentir neste momento, mas ao abrí-lo, ocorrendo exatamente como queria, saltaram daí mais do que lembranças, foram cobras e lagartos, mais cobras que lagartos,
com toda aquela peçonha que lhes é familiar, e arrancaram mais que lembranças, foram sentimentos vivos que reviraram o peito com a mesma sensação de estarem acontecendo pela primeira vez..
Rita! Tenho a boca cheia de poesias e um coração rebelde a te quebrar na cara.
Fechei o livro, cretinamente como se jamais fosse abrí-lo novamente, corri ao banheiro, fiz a barba, tirei o bigode e já era eu novamente: dentes escovados, cabelos penteados, sapatos lustrados...Droga! Onde estão os meus sapatos?
Sentei-me à escrivaninha, de chilenos, e pus na prosa toda a poesia que pude enxergar até o limite que separa o gênio que eu sou, dos teus peitos. Teus peitos Carmem, estúpidos e formosos peitos, que chegam a ferir minha genialidade e põe-me em desalinho com a vida que sonhara.
Mas o que existe entre minha genialidade e os teus peitos, Carmem? Justo eles! O que teriam com minha genialidade? Fácil! É só se lembrar que foram neles que suguei esta vida que me estimula a intelectualizar-me do que estou sendo. E forem deles que extrai o leite que me banha nestas manhãs em que eu sou o moleque que vive em mim.
Ainda tenho os cabelos, os poucos, molhados pela chuva de ontem. Mas não foi uma chuva qualquer não, destas que a gente vê no noticiário que inunda vias e cidades, choveu como se o céu se aliviasse de uma grande dor, como um arroto a aliviar o estômago, aparentemente fisiológico, mas não. Havia algo naquele céu que chovia, na água que escorria no meu corpo, tudo formava um caldo, e eu era a fibra a dar-lhe consistência. Era um jorro de palavrões, cusparada, que nojo! Que alívio! O do céu não o meu.
Cheguei, pus os chilenos... Droga! Onde estão os meus chilenos...Corri ao chuveiro e lavei a alma naquela água cristalina, mas o corpo não, este ainda tinha a chuva. Talvez aquela chuva do céu fosse a minha também.
Beatriz! Ah Beatriz, a quem os sussurros me enlouqueciam! Tenho ainda nos lençóis as dobras que fizestes da última vez, tenho no armário tua meia de seda com teu cheiro de mulher. Beatriz que me ensinou o que havia de bom na dor de partir, que tinha o dom de travestir-se de mim enquanto eu dela. Tirei do teu ventre a semente do que sou e te esqueci como quem se esquece de viver.
Dói-me os bagos neste esforço de resistir a tua boca Doroteia, você que foi de Dirceu e hoje não é de ninguém.
Às seis horas tenho que sair para o trabalho. E tirei os bigodes, o que vão dizer? Mas tinha que tirá-los mesmo, afinal deixavam-me com cara de cafetão, e minhas mulheres são só minhas e de mais ninguém - ou eu delas?
Dobro o último maço de cigarros, foram seis desde as cinco, faço dele, do maço, uma graciosa gravata borboleta e dou ao gato e despeço-me dele como quem vai só até a sala.
O cheiro do lotação não me permite lembrar se usei o meu perfume nesta manhã, ora deve tê-lo usado!
Sete horas e trinta minutos, Estação da Luz, não sei que diabos, " da Luz", que luz?
Ando apressado como se realmente estivesse, mas não estou, assim pareço-me normal. Olho todos os camelôs, e eu os sou: sem vitrinas, tudo à mostra, vísceras a venda, cor de rosa, pink, verde limão - que mau gosto meu Deus!
Ainda recosta-se no muro uma remanescente prostituta. Representante autêntica da puta das putas, batom borrado, saia justa, meias desfiadas, uma bolsinha cafona e um cigarro Plaza.

- Oi querido! E ela nem imagina o que é ser querido, penso. Entristece-me tal constatação, mas ao tempo enoja-me o cheiro de sêmen e de suor que exala de seu corpo.
Não é o teu corpo Marta, não é o meu sêmen. Mas que porra estou dizendo? Marta está longe disso, dorme agora o seu sono de beleza, dorme os seus ursinhos de pelúcia e nem sonha o lotação, a Estação da Luz, a remanescente prostituta.
Sonha o meu carinho, o meu delírio, o desejo de que eu seja só dela, mas não sonha o meu desejo de que ela fosse todas.
Cada uma dessas mulheres têm a minha parcela de culpa em existirem, a cada uma delas dei o meu amor, o meu tempo, dei-lhes minha bondade, generosidade, dei-lhes liberdade, dei-me todo, de graça, fui-lhes enfim, gratuito. E delas tive sua paixão, seu desejo, sua falta de ar, suas mordidas.
Beatriz a que fostes todas antes do todas existirem, Carmem, que teus peitos fiz o molde de meus instintos, Rita que de tua criancice arranquei a mulher que nunca fostes, Dorotéia a que fostes e sempre serás minha musa, Marta que poderia ser qualquer uma e nenhuma e Ana Paula, Ana Paula e a vida que não tive, arrancastes do fundo de meu peito as mulheres que nunca fui.
Eis o impasse de um escritor: quem são estas mulheres? Eu?
Eu, um Super-Homem a la Gilberto Gil?
Eu a mulher que não me tenho? A mulher que se traveste num bigode arrancado a navalha? Eu, um homem inteiro, perverso e feliz? Sim, eu, um homem integro.
São sete e quarenta e cinco, e minha cabeça já não aguenta tanta gente, só mais cinco minutos e alcanço o escritório.
A vida é como uma mulher num tango, ora temos sua boca a um milímetro da nossa, ora a temos quase a um milímetro do chão, então a puxamos novamente, para mais uma vez tê-la a um milímetro da nossa boca, sem nunca realmente tê-la.
À porta do escritório, antes de entrar, recordo-me, ou repito-me, que tudo vale a pena, em tudo existe uma graça, um truque, uma fantasia que se traduz na satisfação em estar vivo, seja qual for a circunstância, seja qual for a sorte sempre é vida, sentir isto é próximo de ser divino, é próximo de ser Deus.
Assim passo o dia sem orgulho, sem rancor, até que o bendito relógio me devolva a satisfação de minha lógica mundana.
Enfim a noite. O resgate num corpo, num copo, num lugar comum, e agora pareço não ter pressa, mas tenho, assim pareço-me normal.
Abro a janelas de casa, e jogo os sapatos, os chilenos, os livros falsos, hoje não verei minhas mulheres, nem terei saudade ou bigode para aparar e durmo, durmo apenas com o moleque que sou, limpo o nariz com braço direito, o suor e o macarrão com o esquerdo...durmo...

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