terça-feira, 5 de maio de 2009

O Bilhete



Tinha ainda nas mãos o gosto de sal. Na verdade sal, limão e peixe.
Na ponta da toalha de mesa, rota e desfiada, limpei sorrateiramente as pontas dos dedos, como se cometesse algum delito. É claro que naquele ambiente ninguém notaria tal gafe.
Carmem era uma moça linda, loira, de olhos claros, corpo bonito e belos seios. Tenho saudade ou uma certa melancolia, não saberia distinguir. Quisera me entregar, mas tudo ficou no porvir.
Mas amanhã tudo irá de vez, amanhã tudo será passado, será distante como Carmem é de mim. Amanhã, assim como hoje, terei uma página em branco para escrever, amanhã terei tudo, como hoje tive, só não pude escrevê-la.
O peso da bagagem cansa-me os braços, o calor parece duplicar-se nesta brisa quente com cheiro de maresia.
Carmem cheirava bem, era branca como a lua, sorria como um anjo, Carmem era...
Nas ruas as pessoas de rostos vermelhos, o suor a banhar-lhes as frontes, fazia calor, muito calor.
Mas o que tinha naquela mala que pesava tanto?
Atravessei a rua do cais, em direção ao bar, a água quente não saciava a sede, o ar pesava...
Meio dia e a cidade parecia volitar numa nuvem embaçada que vinha do chão quente.
Duas horas e todos pareciam dormir, menos eu e minha mala, pesada como arrependimento.
Quanto tempo ainda? O bilhete era em aberto, a ida não...Mas quanto tempo?
Torno ao bar, o da toalha rota, sentei-me e mais água e nada me refresca, a não ser a sensação da partida. Deveríamos viver sempre assim achando que a qualquer momento vamos partir.
Carmem? Não, Carmem não partiu. Ela continua lá, plantada em seu vaso de cristal, não fosse isso talvez pudesse tê-la tocado.
Um dia fui a casa dela, Carmem me recebeu de pijamas, naquele dia soube que a desejava.
E num outro dia ela foi a minha casa, não estava eu de pijamas, mas queria que ela me desejasse.
Ainda estava no bar, o da toalha.
O ar quente me trouxe a lembrança de um verão em Parati, não estava só, tinha Hida comigo. Banhávamos-nos a cada 20 minutos, eu não saberia dizer o que fizemos durante todo o verão, mas lembro-me dos banhos.
As lembranças de outros dias vinham-me com calma a memória. Com a mesma calma de quem escolhe um dia para partir...
Alguns deles me davam muita paz, podia até ouvir as Cantatas de Bach ao fundo. Ah! As Cantatas. Estavam na mala?
Carmem me causava surpresas, era mulher de mistérios. Os mistérios eram dela, só prá ela, a mim , apesar das surpresas, eram-lhes naturais.
Que horas são? O relógio parou...
Poderia sim ter colocado um horário no bilhete, mas detesto que me apressem.
Levanto-me e já não agüento o peso. O que tanto trouxe a final de contas?
Observo na calçada oposta uma mulher com seu filho as mãos, sentados quase desfalecidos, me dá agonia, o que poderia fazer? Ah! Este calor...que calor!
Aproximo-me do cais, a minha esquerda os trens chegam e a minha direita os navios partem, mas quando mudo de calçada tudo parece se inverter. Qual a ordem corretas das coisas?
Carmem parecia querer tudo, do céu a terra tudo poderia querer.
Uma vez, tal qual serpente, dei-lhe uma maça. Bela e vítrea maça, mas o pecado estava em meus olhos e não na maça, Carmem a comeu e voou feito anjo ou bruxa, não sei, atingiu os céus e me devolveu pétalas. Percebi naquele momento que nem tudo que eu continha poderia ter como fundo as Cantatas.
O sol parecia querer dar-me uma trégua. Os trens e navios continuavam a chegar e partir e eu cada vez com menos presa.
Carmem é uma viagem, uma viagem sem partida e sem voltas, Carmem é um estar...
Enquanto espero o mundo passa por mim gritando vida aos borbotões. Chama-me acima, dos lados, à frente e atrás. E só Carolina não vê...
A noite cai e vem uma moça a pedir um cigarro, chame-se Esmeralda, mas de verde apenas o estranho esmalte nas unhas. Senta-se ao meu lado e oferece-me seus favores. Logo eu aceitar favores, detesto pedir favores. Embora a curiosidade me aguce, quero o que seja espontâneo.
Esmeralda mostra-me suas cicatrizes, conta de seu amor, igual a tantas outras estórias de folhetins, mas ímpar na sua infinita dor de mulher.
Que cicatrizes teria Carmem?
Num quarto sujo ali perto, Esmeralda desfaz-se de seus panos. A curiosidade matou o gato, assim dizem, não é? Acredito na vida após a morte, mas não me deitei com Esmeralda, apenas a sonhei. Por mais que sua boca descesse ao inferno, eu estaria no céu...
Comemos ali mesmo o pão da viagem, reparti como qualquer cristão o faria.
Tirando do bolso um pequeno papel, uma mensagem lá estava: “Oração à Mulher”, li um pequeno trecho em voz alta “...Fonte sublime, se as feras do mal te poluíram as águas, imita a corrente cristalina que no serviço infindável a todos, expulsa do próprio seio a lama que lhe atiram...” Deixei-lhe o papel e fui, não queria ser a sua fera muito menos a sua lama...
Esmeralda, a de esmalte verde nas unhas tinha lá suas águas cristalinas, nelas me permiti banhar-me, nelas, resignadamente me banhou quando me deixou sonhar em sua boca que descia ao meu inferno.
Que feras atormentariam Carmem? Solidão?
“...Teu coração é uma estrela encarcerada...”, dizia outro trecho da mensagem...
Amanhece uma nova página em branco.
Degusto o pão amanhecido, as sobras do ontem. Sempre há sobras de ontem.
Novamente à beira do cais desfiz-me, finalmente, do peso que carregava. Atirei ao mar tudo o que não sabia daquela bagagem, eram preconceitos, orgulho, prepotência, tédio e misérias de um ser que não poderia ser.
E eu ainda tinha nas mãos o bilhete... sem data... sem horário... mas com direito a partida...
Carmem? Carmem partiu. Partiu antes que a alcançasse, antes que amanhecesse a alegria em lugar do medo. Foi-se apenas com sua bagagem de mão.

Um comentário:

  1. Anônimo19/5/11

    Olá! Saudações Literárias...
    Passei por aqui e achei muito bem cuidado e interessante o seu espaço.
    Parabéns!
    Sempre que eu puder voltarei para ver as novidades.
    ♥ Abraços de Luz.

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